Tribuna negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933): Parte 1

O investigador e ativista pan-africanista Apolo Carvalho, foi convidado para fazer a apresentação do livro, no dia 4 de maio. O evento que reuniu grandes nomes do movimento negro em Portugal, contou com uma análise minuciosa do trabalho exibido no Tribuna negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933), e partilharemos o texto em três momentos.

Por Apolo Carvalho

“Boa noite a todas as presenças que aqui se manifestam. Gostaria de destacar a importância da apresentação deste livro, neste lugar histórico que é o B.Leza, quiçá o nosso Djulangi¹ contemporâneo nesta metrópole ainda colonial. Lançar um livro neste território de circulação de saberes, onde o conhecimento é produzido sob as formas de música, dança, performance, etc, é romper com uma certa hierarquia científica integrando os livros, o saber escrito, num terreiro mais amplo, diversificado e respirável. Por outro lado, permite-nos também, a celebração. A celebração da nossa existência, da nossa luta, da nossa história da nossa reunião. Parabéns pela escolha do espaço (B.Leza Clube)! 

Foi-me pedido para apresentar este livro e agradeço ao convite, mas queria em vez disso, conversar com ele, contextualizá-lo, interrogá-lo, relacioná-lo com uma tradição negra e africana mais longa, no que diz respeito à produção de saber sobre nós e para nós. Não pretendo, portanto, fazer um resumo e muito menos uma ficha de leitura. Conto, desde já, com a complacência do tempo. 

Nas obras Silences in African History: Between the Syndromes of Discovery and Abolition publicada em (2005) e, Por una recuperación de la historia africana (2010) o historiador congolês Jacques Depelchin discute, de forma interessantíssima, o peso da influência colonial na história africana, apelando à elaboração de uma outra história de África na qual fossem reconhecidas as várias formas de luta que existiram. Para Depelchin, os silêncios (e silenciamentos) são também factos que importam incluir na construção dessa da história e, caberia, aos próprios corpos decretados como inexistentes, recuperar e construir esta história. A sua própria história. Tal ato de insurgência exigiria, per si, uma mudança de mentalidade. 

Esta mudança de mentalidade, implicaria — como dizia Amílcar Cabral (1973) — pensar pela própria cabeça, e marchar com os próprios pés fincados na terra. Dito de outro modo, refletir a partir da realidade concreta e construir instrumentos emancipatórios que nos permitam assumir o nosso lugar na nossa própria história. Um lugar mais justo, mais digno. Para Cabral, recuperar a história que foi interrompida pelo colonialismo, era um passo imprescindível no processo de re-humanização e de conquista de um futuro outro onde a partir da sua própria fonte, o homem novo e a mulher nova pudessem então ressurgir. Ressurgir é o próprio ato de um Renascimento Africano que tem sido discutido — desde os anos 30 pelo menos, se pensarmos em movimentos como Harlem Renaissance — por importantes intelectuais africanos como Cheikh Anta Diop entre outros. Em 1948, este polímata senegalês formulou a seguinte questão: Quand pourra-t-on parler d’une renaissance africaine. Para Diop o Renascimento Africano implicava uma reconexão total com a história longa dos povos africanos. Uma história ocultada, que foi objeto de mentiras e falsificações várias, com a cumplicidade da ciência e da política colonial. O que Diop preconizava era então, uma verdadeira afirmação cultural e espiritual africana, onde o papel e os contributos de África para o mundo fossem reconhecidos e valorizados. O programa político era transformar (de novo) África no seu próprio centro de gravidade. 

Se trago aqui estes importantíssimos pensadores africanos, Diop, Cabral, Depelchin, é porque as suas palavras conversam com e, fazem vibrar numa sintonia cúmplice, a obra que hoje nos reúne. 

Tribuna negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933), representa e assume, exatamente este ato insurgente de recuperação de uma “história silenciada, ocultada, ignorada”, participando num longo processo de resgate desses “conhecimentos forjados na luta” que podemos identificar em vários territórios africano-diaspóricos espalhados pelo mundo. Com esta obra, a autora Cristina Roldão e os autores José Pereira e Pedro Varela, permitem-nos preencher vários vazios que persistem na nossa memória coletiva, mostrando-nos com factos e documentos que nunca houve aridez no que diz respeito à produção de conhecimento, lá onde houvesse uma presença negra. Houve e há sempre, uma imensa fertilidade capaz de fecundar os nossos imaginários sobre nós. Estamos face a um livro que, incidindo sobre o contexto português, rompe com uma certa monocultura no que diz respeito à produção da história ou da historiografia portuguesa e fá-lo de uma forma generosa, criativa. Face ao rigor científico, a imaginação e o imaginário surgem como formas de uma escrita que procura com os parcos elementos que possui, conjeturar cenários. À maneira de um tecelão, o manto de retalhos de uma Lisboa negra é trabalhado e, na nossa contemplação, adivinhamos um trabalho de imenso cuidado e robustez. 

O título tribuna, que faz evocação a um dos jornais da época fundado por João Castro e Ayres Menezes, duas importantes figuras no então movimente negro, assume aqui uma força política e uma liberdade epistémica tais que, nos lembra a célebre frase da pensadora brasileira Lélia Gonzalez, ao referir-se à importância de sermos sujeitos do conhecimento da nossa própria história, ainda que estejamos socialmente relegados a um lugar de marginalidade . A propósito da sociedade brasileira dizia assim Gonzalez, e passo a citar:

“ na medida em nós negros estamos na lata de lixo da sociedade … pois assim o determina a lógica da dominação …o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados … neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”

A provocação, latente no termo tribuna explícito no livro, não é gratuita, parece-me. Trata-se de uma insurgência epistémica de quem decide não só conhecer mas também ser autor da sua própria história. A tribuna é um lugar de fala por excelência reservado às pessoas autorizadas. É a partir da tribuna que estas tomam a palavra e se anunciam. Neste sentido, quando aqueles que foram silenciados pela história, “jogados na lata de lixo da sociedade”, decidem falar nos seus próprios termos e escolhem a tribuna como lugar de fala, iniciam o próprio processo de descolonização do pensamento e da história, transformando também o lugar de onde se enunciam. 

Uma das coisas que me interessou neste livro é o facto de trazer informações novas, sobre organizações, eventos e pessoas negras, revelando igualmente, tal como as rotas de fuga, vários sinais, marcas, traços, vestígios, de caminhos ainda por refazer. Ou seja, lança novas pistas de pesquisa, prova da imensidão e da complexidade da nossa história. A título de exemplo, entre as várias imagens de arquivo que são apresentadas, há textos escritos em línguas africanas, de São Tomé e Príncipe especificamente. O que quererá dizer isso, o que podemos mais saber sobre?. E sobre a população negra trabalhadora pobre, marginalizada, relegada às penumbras da sociedade, aqueles que faziam parte desta longa presença que chegou a atingir cerca de 10% só em Lisboa? Sobre eles o livro dedica poucas páginas como que nos dizendo que há ali todo um trabalho de escavação a fazer apesar das referências que já existem (Tinhorão, Castro Henriques etc).

Trata-se portanto de um livro fundamental para o estudos pan-africanos, que nos instiga a questionar uma série de aspetos sobre esta presença, longa e diversa das pessoas negras africanas em Portugal. 

Os autores falam sobre a importância da construção de um arquivo negro. A questão da construção de um arquivo e uma biblioteca nossa tem sido amplamente discutida no âmbito do pan-africanismo ao longo da história. Na minha perspetiva, a questão nem é tanto sobre biblioteca e o arquivo, que são em si edifícios, de conservação cujas paredes, processo de catalogação e métodos de “arquivabilidade” disciplinam, silenciam e violentam, mas sim, a produção e diria mesmo, a criação de conhecimentos de libertação que têm interessando estes movimentos. A busca pela nossa verdade como canta a batucadeira e compositora cabo-verdiana , Ilda Vaz.”

________


¹Djulangi (ou Julange em Português) é uma localidade em Santa Catarina, no interior da Ilha de Santiago, que nas primeiras duas décadas do século XVII serviu de refúgio a cerca de seis centenas de homens, mulheres e crianças que fugiam dos maus tratos da escravidão para recriarem, na autonomia e liberdade, suas vivencias e costumes ancestrais. Palavra de origem africana, Djulangi fica na história como um dos maiores “quilombos” de Cabo Verde. Quilombo é uma palavra de origem quimbundo ( Angola) e embora por temor não tenha sido utilizada em Cabo Verde, na diáspora africana da colonização portuguesa o termo ganhou o significado de comunidades autónomas de escravos fugitivos.

Traduzir
Scroll to Top