Tribuna negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933): Parte 2

O investigador e ativista pan-africanista Apolo Carvalho, foi convidado para fazer a apresentação do livro, no dia 4 de maio. O evento que reuniu grandes nomes do movimento negro em Portugal, contou com uma análise minuciosa do trabalho exibido no Tribuna negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933), e partilhamos a segunda parte.

 

Por Apolo Carvalho

“Quando em setembro de 2017, num artigo intitulado: Racismo – 2018, um ano para a história? Marta Araújo afirmava que: “2017 foi um ano zero no debate público sobre racismo em Portugal” na medida em que “proliferaram as vozes que denunciaram o racismo no quotidiano, nas estruturas de oportunidade e na construção de conhecimento – levando ao fim do estado de negação”, não obstante desconhecer grande parte da trajetória das lutas negras em Portugal, senti que se produzia ali várias ausências cujas vozes gritavam das sombras. Sabia por intuição que, o estado de negação que persiste neste país, atravessa também o campo de conhecimento sobre a presença negra. Sabia que, estando a luta na génese dos povos africanos esta luta era longa, diversa. Aliás, como diz Deolinda Rodrigues, a vida, o próprio ato de viver é já em si uma luta. 

Mas sabia sobretudo que, o papel incalculável desempenhado pelas pessoas negras na transformação dessa sociedade portuguesa é ainda hoje, objeto de negação, e de ignorância. Mas não uma ignorância qualquer. Uma ignorância política, historicamente produzida, sistematicamente presente nos setores mais doutos e progressistas da sociedade portuguesa. Trata-se daquilo Flávio Almada, num importante e interessantíssimo artigo publicado na Plataforma Gueto, chama de “ ignorância branca não-ignorante”. Esta produção de uma “ignorância não ignorante” sobre os povos africanos é multicelular. 

A propósito da revolução ayitiana, que alterou profundamente o sistema mundo escravocrata colonial, CLR James (1939) escreveu. 

“A história revolucionária do negro é rica, inspiradora e desconhecida. Os negros se revoltaram contra os invasores de escravos na África; eles se revoltaram contra os comerciantes de escravos na passagem do Atlântico. Eles se revoltaram nas plantações. O negro dócil é um mito. O único lugar onde os negros não se revoltaram é nas páginas dos historiadores capitalistas. Não é de estranhar que os negros se revoltaram. Teria sido estranho se não tivessem.”

Portanto, não obstante a interessância do artigo de Araújo, é um mito que 2017 tenha sido o ano zero das denúncias públicas de racismo em Portugal. E seria estranho que assim o fosse porque, as lutas estão sempre inscritas num longo continuum histórico e, se a contextualização dessas lutas é importante, fixá-las num presentismo determinado, cronofágico, na medida em que consome, come e descarta temporalidades outras, impede a possibilidade de esse longo voo Sankofa que precisamos fazer. Este longo voo objetiva, precisamente, a descolonização do tempo, dos calendários e das genealogias, permitindo-nos ver outros rostos, ouvir outras vozes e reconhecer, quiçá, formas de resistência pública ainda não “catalogadas”

Não é por acaso que, num outro artigo publicado por Cristiana Roldão e Mamadou Ba, em janeiro de 2018 , afirmavam precisamente que a “ a consequente alta-visibilidade em 2017 tem as suas raízes num movimento longo, difuso, quotidiano, negro e cada vez mais no feminino, de debates, peças de teatro e cinema em torno da questão negra; celebrações das raízes culturais e ancestralidade; redes de solidariedade inter-bairros; (re)construções estéticas e identitárias afrocentradas; exposições, blogues, textos escritos a várias mãos e música a várias vozes.”

No que diz respeito à visibilidade e à construção, no presente, de um arquivo negro, é importante destacar o papel que a Rádio Afrolis, através das entrevistas da jornalista Carla Fernandes vem fazendo desde 2014. O papel desta associação a par de outras iniciativas que precisamos ainda conhecer, tem sido importante.

Seria contudo o artigo de José Pereira e Pedro Varela sobre: As origens do movimento negro e antirracista em Portugal no século XX: a geração de 1911-1933, a avançar de forma mais direcionada e profunda neste arquivo negro daquele século, até então do conhecimento de poucos, colocando a público. Na linha desta investigação surgiram exposições itinerantes pelas escolas e outros lugares. Quiçá, um dos momentos altos da abertura deste arquivo mais antigo ao público afrocontemporâneo, tenha sido a reedição do jornal O Negro em março de 2021 .

Tal como os próprios autores afirmam, Tribuna negra, o livro que sai agora a lume, é o resultado de um longo percurso de investigação no qual se inserem estes três momentos que mencionei mas também uma série de pessoas e organizações como Bazofu Dentu Zona, FEMAFRO, Falas Afrikanas, entre outras. De facto, dentro dos movimentos negros, as autorias coletivas têm sido há muito, o modus operandi na produção de conhecimento. O reconhecimento das contribuições várias mas também a manutenção de uma relação de reciprocidade com quem contribui é fundamental para elevar a qualidade da nossa luta e de construção desses “saberes forjados na luta”.

O papel de Mário Pinto de Andrade é muitas vezes mencionado pelos autores como fundamental para este livro. Além das entrevistas várias, o livro Origens do nacionalismo africano: continuidade e rutura nos movimentos unitários emergentes da luta contra a dominação colonial portuguesa: 1911-1961, publicado em 1997, é constantemente chamado à tribuna para informar e conversar. Esta obra, desconhecida de muitos, encontra-se hoje praticamente esgotada. Ao passo que, importante livro referentes às lutas norte-americanas tem traduzidas e publicadas pelas editoras em Portugal (muito devido ao contexto do bárbaro assassinato do George Floyd), o livro do Mário Pinto de Andrade, que faz uma verdadeira sociologia da condição negra em Portugal, é praticamente ignorada. Tal como é ignorado ou desconsiderado os contributos académicos deste autor no campo da sociologia ou do ainda inexistente (pelos menos aqui) estudos pan-africanos. Há aí todo um processo de reparação e justiça epistémica a serem feitos e os autores chamam-nos atenção a isso. 

Sem nenhuma pretensão de esquartejamento, nem de fazer um resumo grotesco, sinto que a Tribuna Negra possui três momentos importantes a destacar. Na primeira parte passamos a conhecer os percursos desta geração negra, numa Lisboa predominante branca. Este percurso é-nos narrado a partir de uma série de organizações políticas tais como a Liga africana ou o Partido Nacional Africano que existiram e se relacionam ainda que entre dissensos (voltarei esta questão dos dissensos a seguir). Se em março de 2021, 110 anos depois passamos a saber que existiu um jornal chamado O Negro, onde já se denunciavam o racismo em Portugal, Tribuna Negra apresenta-nos cerca de onze periódicos que surgiram naquela época. títulos como: A Voz D’Africa, Tribuna D’Africa O Eco D’Africa, Correio de África ou África Magazine, pertencentes a uma série organizações, dão-nos conta do quão pública foram as vozes negras e as denúncias de racismo, não obstante todos os ataques e censura.

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