Vicissitudes da linguagem…

Bom dia, boa tarde ou boa noite jovem leitor (a). 

Sendo uma capacidade inata, a linguagem humana é riquíssima. Através da linguagem, podemos interpretar os diferentes mundos em que vivemos, refletindo sobre eles, representar simbolicamente as coisas e diferentes contextos socioculturais, estabelecer interações através de partilhas sobre saberes ancestrais, vivências pessoais, profissionais, académicas, políticas… Através de um gesto, de um movimento dançante, de um sentimento, de uma palavra, de uma frase, de um cântico, podemos evidenciar diferentes estados d’alma. Enquanto seres humanos criativos que somos, temos vindo a deixar registos dos nossos modos de ver, de pensar, de sentir e de agir. 

Quantxs de nós já fomos chamadxs de “macaco” ou de “macaca”, nas instituições educacionais, em outros contextos sociais, no dia-a-dia e mais recentemente, nas redes sociais, independentemente das nossas idades? Ou ainda de “mulato” ou de “mulata”, de “cabrito” ou de “cabrita”, de “chocolate”, de “selvagem”, de “de cor”, de “diabo” ou de “diaba”, de “carvão”, de “mosca”, de “cocó”, de “escurinho” ou de “escurinha”, de “café”, de “lixo”, de “bandido” ou de “bandida”, de “porco” ou de “porca”, de “escravo” ou de “escrava”, de “negro” ou de “negra” ou de “preto” ou de “preta” acompanhados de adjetivos pejorativos, entre outros insultos? 

Quem sofre insultos racistas sabe bem o quanto pesam holísticamente tais agressões em seu corpo. Quem agride está a reproduzir conhecimentos normativos que são adquiridos nos seios familiares e noutras instituições ao longo da sua vida e pode ser que nunca venha a reconhecer os atos racistas/agressivos que comete. Os modos como as pessoas negras têm vindo a ser maltratadas secularmente através de vicissitudes da linguagem, em territórios europeus ou americanos, estão devidamente pesquisados e registados, sobretudo em livros e/ou artigos científicos. No entanto, continuamos a reproduzir tais vicissitudes. Algo que poderia ser combatido através da existência de programas educacionais acessíveis a todxs, durante a formação escolar básica, a educação secundária, a educação universitária e a formação de adultos ao longo da vida, onde possamos refletir criticamente sobre factos históricos e sobre comportamentos humanos. 

Vejamos o seguinte exemplo: em um set de filmagem, um diretor de telenovela dirige um elenco de atores e de atrizes, pessoas negras e pessoas brancas. Em um dado momento, eis que o diretor ordena “elenco pra esse lado” (referindo-se às pessoas brancas) e “negros pro outro lado” (referindo-se às pessoas negras). Uma das atrizes, que é uma mulher negra, pergunta ao diretor: “E eu que sou do elenco e sou negra, de que lado fico?” e não obtém resposta alguma. Este e outros episódios de racismo decorreram no âmbito da produção da telenovela brasileira Nos Tempos do Imperador (2021), da Rede Globo de Televisão e foram tornados públicos no ano passado. As atrizes Cinnara Leal, Dani Ornellas e Roberta Rodrigues tornaram-se as principais referências da denúncia de racismo e o diretor, Vinícius Coimbra, foi afastado da emissora. Um inquérito foi aberto pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro para a apuração da denúncia. 

“Negros pro outro lado”? Quantxs de nós já lemos, auscultamos e/ou visionamos histórias sobre como segregavam, até muito recentemente, muitxs dxs nossxs antepassadxs, impedindo-xs de viver igualitariamente em sociedade? Amandla, Nelson Mandela! Quanto à questão de género, se a atriz, mulher negra, que fez a pergunta ao diretor, fosse um ator, um homem negro, o diretor não lhe responderia? Observemos pois, no nosso dia-a-dia, como ainda é bastante normativo o silenciamento dos sentires e das vozes das mulheres negras.

As classificações dos grupos humanos em “raças” decorreram em virtude dos modos de ver, de pensar, de sentir e de agir dos europeus, durante o processo de conhecimento dos povos não-europeus, envolto aos diferentes tipos de violências, como invasões e ocupações de terras, violações sexuais de mulheres, de crianças e de homens, escravização de pessoas (que não eram consideradas enquanto pessoas). Embora no século XX, o conceito de raça tenha sido invalidado cientificamente pelo campo do conhecimento genético, houve o fortalecimento de teorias eugénicas desenvolvidas no fim do século XIX na Europa e de teorias colonialistas, cujos cunhos ideológicos e nacionalistas desembocaram em regimes políticos fascistas. De modo que, as vicissitudes da linguagem racista foram amplamente difundidas, através da escrita de memórias, postais, filmes e oralidade. A exposição O Impulso Fotográfico (des)arrumar o arquivo colonial, que está patente temporariamente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa, , até 31 de Dezembro de 2023, dá-nos perspectivas bem interessantes sobre como o movimento colonialista tardio português engendrou as suas ações e sobre a existência de um movimento da resistência negra em Portugal. 

O conceito – raça – continua a existir nos imaginários coletivos, em territórios ex-colonizados como o Brasil ou ex-colonizadores, como Portugal, entre muitos outros. Violências geram violências em continuum. É necessário que estejamos atentxs aos modos como comunicamos e as suas consequências. A vivência de uma educação antirracista pressupõe o cultivo do afeto entre seres humanos, em todos os setores da sociedade, pressupõe conhecer o passado histórico, observar o presente histórico, reescrever as nossas histórias no coletivo. 

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