Declaração do Porto: reparar o irreparável

A escravatura, a colonização, o genocídio e o etnocídio de populações nativas em África,  na Abya Yala e na Ásia, a racialização e a exploração de povos e corpos-territórios humanos e não humanos, constituem os maiores crimes cometidos contra as nossas humanidades. Desde o século XV, milhões de pessoas foram sequestradas, escravizadas, violadas e submetidas às mais variadas formas de desumanização, em função de um projeto colonialista, forjado numa ideia perversa de civilização.

Portugal foi pioneiro nesse bárbaro empreendimento de acumulação de capital baseado em práticas genocidas e escravocratas, tendo deslocado quase 6 milhões de pessoas dos 12,500 milhões de registos. Foi o último país da Europa a abolir a escravatura, em 1869, mantendo a prática do trabalho forçado até aos anos 1960 do século XX. Foi ainda a última potência colonial a reconhecer as independências dos territórios ocupados. Se, de facto, o 25 de Abril fechou as portas ao fascismo salazarista, várias janelas ficaram escancaradas e, através delas, os saudosistas vão reavivando a sua memória colonial e (re)inscrevendo-a no espaço público. Portugal não se descolonizou. Apesar dos quase 50 anos de democracia e da contestação ao discurso de glorificação do passado, este mantém-se ainda o oficial e dominante. É indispensável reconhecer a dívida histórica para com pessoas negras, ciganas/roma e indígenas, para potenciar um debate, efetivo e honesto, sobre políticas de reparação.

Nas definições da palavra reparar, encontramos: retocar, consertar, restaurar, indemnizar, restabelecer e compensar. Porque a colonialidade não é uma mera condição, mas um estado de espírito e de coisas, acreditamos que nenhuma dessas palavras, ou qualquer outra da gramática colonial da língua portuguesa, traduz a dimensão ou sequer sugere o que designamos por reparação, no que toca a tais acontecimentos irreparáveis para a vida e a dignidade desses povos. Ainda assim, para além de qualquer conceptualização, consideramos urgente implementar políticas e práticas efetivas de reparação nas suas várias dimensões, inclusive simbólicas.

Nesse sentido, e na continuidade das reivindicações históricas das organizações e movimentos de (e em) luta, exigimos ao Estado Português:

1. Reconhecimento do COLONIALISMO, da ESCRAVATURA, dos MASSACRES COLONIAIS, do TRABALHO FORÇADO, da negligência às FOMES, das PRÁTICAS GENOCIDAS, ETNOCIDAS, SEGREGACIONISTAS e EPISTEMICIDAS enquanto crimes contra a humanidade  e, consequentemente, a formalização de pedidos de desculpas.

2. Anulação de todas as dívidas (odiosas, injustas, ilegais e/ou imorais) contraídas pelos países ocupados e colonizados por Portugal e o pagamento de indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo, por exemplo, entre outros, aos ex-contratados de São Tomé e seus descendentes.

3. Implementação de políticas públicas afirmativas, transversais, de combate à desigualdade racial através da mobilização de recursos financeiros consequentes, via Orçamento do Estado, em áreas-chave para a equidade social – educação, emprego, habitação, saúde, justiça,  transportes, cultura – envolvendo diretamente as pessoas racializadas e as suas organizações na definição, elaboração e execução de políticas públicas. Para tal, consideramos fundamental a recolha de dados étnico-raciais.

4. Adopção e plena implementação do princípio jus soli, atribuindo a nacionalidade portuguesa a todas as pessoas que nasceram em Portugal.

5. Desburocratização dos processos de pedido de vistos, livre circulação e garantia dos direitos de cidadania para os imigrantes dos países que foram colonizados por Portugal.

6. Criminalização do racismo, com condenação efetiva, para as pessoas acusadas e indemnização financeira para as vítimas.

7.  Desinvestimento nas prisões e no policiamento racista e repressivo, com canalização de recursos financeiros diretamente para as comunidades mais marginalizadas, de forma a apoiar o seu fortalecimento, investindo, com vigor, em áreas fundamentais como educação,  saúde, habitação e emprego. Implementação de medidas políticas estruturais, não reformistas, que tenham por horizonte a abolição das prisões e adoção de políticas sociais baseadas numa justiça  retributiva  e restaurativa.

8. Instituição de uma Carta de Princípios Anti-Racistas e formação em literacia étnico-racial, em todas as áreas da função pública e do sector privado de prestação de bens e serviços, nomeadamente no âmbito da educação básica.

9. Descolonização dos manuais escolares, designadamente no que toca ao colonialismo português, com introdução no programa de ensino da história de África, do Brasil e da presença negra e cigana/roma em Portugal numa perspectiva não-eurocêntrica, submetendo-os à apreciação de uma comissão formada por pessoas e organizações racializadas e antirracistas.

10. Reconhecimento do papel dos Movimentos de Libertação Africanos no 25 de Abril de 1974.

11. Isenção de propinas para alunos provenientes dos países e territórios colonizados por Portugal.

12. Restituição às comunidades colonizadas, e sem prejuízo de condições financeiras ou de outra natureza, dos objetos, arquivos, artefatos e corpos humanos presentes nas instituições de cariz museológico. Disponibilização de recursos financeiros e outros, de acordo com as demandas dessas comunidades, no apoio às infraestruturas para receber e ativar objetos, arquivos, obras e criação de uma plataforma de encontros para troca de ideias sobre restituições e responsabilidades coletivas com a participação ativa das comunidades.

13. Desmantelamento de estátuas e de monumentos racistas, e contextualização das sequelas do passado colonial. Desenvolvimento de políticas públicas de (sobre e para) a memória que destituam o imaginário colonial e, simultaneamente, identifiquem e inscrevam as pessoas e narrativas não-brancas ausentes do imaginário coletivo.

14. Construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, um dos projetos mais votados no Orçamento Participativo do Município de Lisboa de 2017 e consecutivamente adiado. Discussão na Assembleia da República sobre a memorialização das vítimas da escravatura e do colonialismo como um projeto abrangente a nível nacional.

15. Total transparência no que diz respeito aos restos mortais das 158 pessoas encontradas no Valle da Gafaria, em Lagos, atualmente a cargo de uma empresa privada em Coimbra. A sua transladação e enterro, bem como a digna memorialização do local (hoje um parque de estacionamento com um mini-golfe no topo) como o mais antigo cemitério de pessoas escravizadas no mundo e em diálogo com o Núcleo Museológico Rota da Escravatura.

16. Reconhecimento e inscrição da figura de Amílcar Cabral no espaço público como um dos precursores da democracia em Portugal.

17. Descolonização do hino e de todos os símbolos nacionais que evoquem a exaltação do passado colonial.

18. Reconhecimento do cabo-verdiano e do guineense enquanto línguas nacionais, à semelhança do mirandês, e difusão da diversidade linguística que habita o país, através da promoção de políticas públicas do seu ensino.

19. Implementação da data de 10 de Junho como o dia de Alcindo Monteiro e de todas as vítimas de racismo e de xenofobia em Portugal.

20. Políticas de reparação de biomas e de paisagens, apoiando as comunidades dilaceradas pelo extrativismo e pela monocultura intensiva e superintensiva, em Portugal e nos países que foram colonizados por Portugal.

Entendemos que reparar tem necessariamente de provocar uma ruptura radical com o sistema colonial e capitalista cujo brutalismo e política de morte assombra ainda os futuros dos nossos povos. Acreditamos que Portugal, tal como toda a Europa, é estruturalmente racista e colonialista.

Sabemos que os crimes cometidos pelo colonialismo são não só indefensáveis como irreparáveis. Entendemos, no entanto, que a reparação é um imperativo, o único caminho possível para um sentimento de justiça com os nossos ancestrais e para a construção de presentes e de futuros mais dignos e mais justos.

Inscrevendo-se numa constelação histórica por reparações, tão antiga quanto o colonialismo e a escravatura, e tendo nascido de um contexto específico para acomodar distintas vontades e realidades sócio-políticas, a Declaração do Porto: Reparar o Irreparável será sempre um documento inacabado e, por isso mesmo, nele não se encerra.

 

As/os participantes da Oficina de Reparações (entre 23 de junho e 6 de julho de 2023):

Ana Cristina Pereira/Kitty Furtado, Aline Frazão, Apolo de Carvalho, Gessica Correia Borges, Inês Beleza Barreiros, Mamadou Ba, Marta Lança, Pirá/Ellen Lima Wassu, Sara Henriques, Tomé Silva

imagem de Vanessa Fernandes.

Assinaturas:

  1. Acksana Silva, socióloga

  2. Afrolis

  3. Allex Miranda, ator, dramaturgo, roteirista

  4. Ana Balona de Oliveira, historiadora da arte e curadora

  5. Ana Maria Garcia Nolasco da Silva, professora de arte

  6. Ana Rita Alves, antropóloga

  7. André Castro Soares, antropólogo

  8. António Serzedelo, professor aposentado

  9. António Vaz

  10. Bandeiras da Voba

  11. BUALA, associação cultural

  12. Bruno Caracol, artista

  13. Catarina Laranjeiro, investigadora

  14. Catarina Vieitas, professora

  15. César Schofield Cardoso, artista caboverdiano

  16. Cristina Roldão, socióloga

  17. Diogo Bento, artista e docente universitário

  18. Dori Nigro, performer e educador

  19. Djuzé Neves, Batoto Yetu Portugal

  20. Dusty Whistles, artista, ativista

  21. Filipa César, artista e investigadora

  22. Fradique Bastos, cineasta

  23. Gisela Casimiro, escritora e artista

  24. Grupo EducAR – Educação Anti-racista

  25. Hitler Jessy Tshikonde “Samussuku”, estudante e activista cívico

  26. Ilda Vaz, artista, compositora, batucadeira

  27. Iolanda Évora, investigadora, professora

  28. Janine Brandão, pesquisadora

  29. Jessica Bruno, professora, ativista

  30. Jô Kalagary, artista

  31. João Branco, encenador, professor de teatro e investigador

  32. Jonathan da Costa, comunicador e mediador cultural

  33. Jorge Louraço Figueira, dramaturgo

  34. José Augusto Pereira, historiador

  35. José Pina Baessa, dinamizador cultural

  36. José Rui Rosário, músico e poeta

  37. Josina Almeida, historiadora da arte

  38. José Falcão, ativista antirracista

  39. Leopoldina Fekayamãle, professora e ativista angolana

  40. Luís Camanho, designer

  41. Lúcia Furtado, Femafro

  42. Mamadou Ba, ativista SOS Racismo

  43. Maria do Carmo Piçarra, investigadora

  44. Margarida Vale de Gato, professora, poeta e tradutora

  45. Marta Pinto Machado, investigadora IHC – NOVA FCSH/IN2PAST e fotógrafa

  46. Miguel Gullander, escritor e professor

  47. Myriam Taylor de Carvalho, empreendedora de impacto social

  48. Maíra Zenún, artista visual, pesquisadora e poeta

  49. Nêga Filmes

  50. Ntaluma, escultor makonde

  51. Nuno Milagre, técnico de cinema

  52. Olivio Pereira, diretor comercial

  53. Paula Cardoso, jornalista

  54. Patrícia Martins Marcos, historiadora

  55. Pê Feijó, escritora

  56. Pedro Antunes, antropólogo

  57. Pedro Schacht Pereira, professor universitário

  58. Raquel Lima, poeta, arte-educadora e investigadora

  59. Raquel Schefer,  investigadora

  60. Rede Afrolink

  61. Rita Cássia, antropóloga e artista

  62. Rita Brás, documentarista

  63. Rita Fevereiro, professora de artes visuais

  64. Rui Gomes Coelho, arqueólogo

  65. Rui Rodrigues, escultor, artista plástico

  66. Salomé Honório, escritora e investigadora

  67. Sara Simões, arqueóloga

  68. Sheila Khan, investigadora

  69. Sofia Afonso Lopes, doutoranda em História

  70. SOS Racismo, associação antirracista

  71. Sumaila Jaló, estudante de ensino superior e activista

  72. Tiago Vieira da Silva, investigador e professor

  73. Tomásio Mendes Costa, licenciado em Estudos Africanos

  74. Vania Puma Andrade, educadora, poeta e performer

  75. Víctor Barros, investigador

  76. Xana Piteira, Orla Design

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