Direito ao Não

A escassez cria um ambiente propício para decisões precipitadas ou por default uma disponibilidade imponderada. É um sentimento que se cria em indivíduos ou comunidades a quem sistematicamente colocamos numa posição de falta. Falta de recursos financeiros, falta de recursos emocionais, falta de recursos humanos. Falta… Esse sentimento de falta, resulta na falsa percepção de que o que vier, seja de quem vier, seja de onde vier é para agarrar. Nunca se sabe se outra oportunidade virá.  Oportunidade para estar do lado correto da história (leia-se da história que será contada e que vai ficar nos arquivos acessíveis a um grande público); oportunidade para se fazer parte da transformação da vida de um indivíduo; oportunidade para se ganhar o pão por inteiro e não apenas migalhas; oportunidade para se sentar à mesa onde se tomam as grandes decisões; oportunidade para se ser visto em grandes arenas, para se ser ouvido em grandes palcos, para sentir grandes emoções.

A quem têm sido negadas essas oportunidades? Aos que historicamente silenciamos. Mas há poder no silêncio. Há poder na recusa em participar. Há poder no “Não”. 

O exercício do direito ao “Não” é algo no qual talvez não pensemos com frequência mesmo que o exerçamos. O “Não” numa escassez percecionada parece algo impossível, mas não é. 

Se pensarmos na quantidade de pessoas negras que desenvolvem as suas atividades em áreas como o ativismo, artes, literatura, política, educação, que se sentem frustradas por, quando surge uma oportunidade de falarem sobre o seu trabalho, serem, na esmagadora maioria das vezes, convidados em um contexto em que questões raciais estão no centro da discussão, podemos considerar uma maior reflexão sobre o exercício do direito ao “Não”. A redução da nossa intervenção social, artística, política, etc. a questões raciais, é isso mesmo, redutora. Não é uma surpresa, por esse motivo, que se considere o “poder do não” para a expansão da nossa afirmação enquanto seres humanos que, sim, são negros, e que obviamente têm múltiplas experiências e contributos fora da realidade que é o racismo.  A quantidade de novos palcos que fomos criando, novos públicos e arenas que se multiplicam em que pessoas negras falam de tudo o que as suas englobam mostram a consciência desta realidade. Porque o silenciamento de pessoas negras é também feito através desta dinâmica de “interesse” excessivo no que a pessoa negra tem para dizer neste contexto e a desautorização completa de tudo o que ela possa trazer como contributo fora dele. 

Existe também a tendência de uma aproximação a pessoas negras para o aumento da autoestima das pessoas brancas dentro do que se considera o espectro de interações racistas. Porque os bons colonizadores são os que se misturam. “Não somos assim tão maus.”  E nós pessoas negras, porque não são assim tão maus, deveríamos dizer “sim” a essa mistura, estar orgulhosos, porque a alternativa seria a carnificina (menos lenta), a escassez. 

Houve um episódio que me ficou na mente contado por uma amiga da minha mãe que era trabalhadora doméstica. Na altura ela devia ter os seus cinquenta anos. Ela ia no autocarro, cansada após um dia longo de trabalho em diferentes casas. O autocarro estava cheio e não havia lugares vazios. Entrou uma senhora branca mais velha, de cabelos brancos. A Dona Isabel (nome fictício) pensou em levantar-se para dar-lhe o lugar, apesar do cansaço. A senhora antecipou-se e ordenou “Levanta-te!” O tom com que aquelas palavras foram proferidas era demasiado familiar para que Dona Isabel o ignorasse. Respondeu “Há aqui jovens que lhe poderiam dar o lugar. Porque tenho de ser eu levantar-me?” O tom reconhecido por Dona Isabel em palavras explícitas: “Vocês pretos vêm para cá e pensam que são donos disto tudo. Se fosse lá em África…”

 A dona Isabel: “Eu ia mesmo dar-lhe o lugar porque é mais velha, mas se a senhora não tem educação, vai mesmo ficar em pé. Não lhe vou dar o meu lugar”

As pessoas do autocarro, contava orgulhosa a dona Isabel, “Isso mesmo!”; “Não pode falar assim com as pessoas!” “Uma pessoa dessa idade a falar assim…”

O “não” de Dona Isabel restitui o seu poder naquele momento. O “sim” fácil esperado por aquela mulher branca idosa, não se fez ouvir, e ela tentou encontrar conforto na memória do tempo em que poderia arrancá-lo se estivesse em África. Pois esses tempos acabaram e apesar das nossas fragilidades e tentativas por parte do sistema de opressão racial, temos o direito ao não e oportunidades infinitas de exercê-lo um sentimento de estar em dívida. Ninguém nos faz um favor por se “misturar” connosco. Não é um privilégio anuir ao pedido de uma pessoa só porque ela é branca, na esperança de algum reconhecimento. Não é expectável que as pessoas negras digam “sim” a qualquer pedido vindo de pessoas brancas, porque é a “ordem natural” das coisas. O exercício do “não” é um ato de autopreservação.

Nota: Ouça também o 3º episódio da série de audiodramas da Afrolis “Ritual de Escuta”, que trata esta temática. Sinopse: “Não.” é o título do terceiro episódio da série de audiodramas, Ritual de Escuta, produzida pela Afrolis. O direito ao “não”. Quem pode dizer “não”? Quando dizemos “não”? Que consequências daí advêm? O que nos motiva? Poderá ser apenas libertador? O terceiro episódio da série Ritual de Escuta explora as possibilidades e limitações desta palavra, que tanto pode simbolizar uma limitação como imensas possibilidades. No universo do que percecionamos enquanto justo ou injusto, qual o papel desta palavra?

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