Nós Nos Livros: Antologia de Contos de Lília Momplé

Lília Momplé nasceu naquele tempo, um tempo próximo demais para ser história com H maiúsculo, mas longínquo o suficiente para contar a sua versão da História. Uma versão de vidas contadas em dias bons e maus, em dias decisivos, em dias de paz e de guerra e de morte e esperança.

A Antologia de Contos de Lília Momplé fala de Moçambique que vê seus filhos morrer de pobreza e tuberculose, palmatórias aleatórias, criando um estado de desespero silencioso, que leva um bom homem a matar a sua mulher e continuar a beber a sua cerveja. Fala de meninas, uma inteligente demais para seu bem, que se viu a cortar em pedaços bem pequenos o seu vestido de finalista, porque o diretor disse… porque ela até não se iria sentir á vontade… que no fundo eles, os outros, não estão habituados a conviver com gente de cor… e para evitar aborrecimentos… Lá se foi o vestido, as horas de trabalho da mãe, o sacrifício do pai, e porque não podia falar macua, porque tinha de estudar e ser alguém, é o português que lhe falha quando tem de explicar à sua mãe que ainda não é gente suficiente para ir ao baile. A outra menina, não tão inteligente, mas com o sorriso que ilumina o rosto, morre pouco depois de se fazer mulher. Morre porque sim, morre porque o administrador tem direito ao seu corpo, porque sim, porque quer, porque pode. E quando a avó recebe o seu corpo ensanguentado e inanimado, só pode chorar e perguntar “porquê?” – “Ela não queria, mas foi! Porquê matar?!” – Mas ninguém Matou Suhura…

A guerra veio e foi. E foi quem lutou pela democracia que nem sempre foi recebido como herói;  esqueceram o desespero silencioso e só recordavam os gritos, as palhotas queimadas, as noites dormidas no mato, a necessidade de fugir. “Viemos só para ver um dos que desgraçou nossas vidas.” Foi preciso fazer o Xirove, o ritual em que beber um líquido nos lava do crime e da culpa de forma a permitir uma reintegração na comunidade. O herói partiu logo a seguir, sem consumar o seu desejo pela sua cunhada e sem esperar pelo toque dos batuques. Será que o Xirove resultou?

Alima também sofreu com a guerra, pois a RENAMO veio interromper a alfabetização, o que a deixo apenas com o 2º ano, depois de tudo o que sofreu para conseguir estudar. Mas depois da guerra, recebe o diploma de 4ª classe e com ele pretende levantar o véu que encerra um mundo de infinitos horizontes, com o qual sempre sonhou, desde criança.

Lília Momplé diz que escreveu o primeiro conto da Antologia porque estava zangada! E assim surge o conto mais atual, mas que reconta uma história antiga de olhos negros, que perdem a doçura quando se esbarram constantemente contra as paredes de uma estrutura, que mantém esvaziadas todas as oportunidades para uma vida melhor. Até que surge a última oportunidade que lhe pede que feche os olhos e vá às cegas lutar contra os terroristas do Al Qaeda; e tudo ia tão bem… não fossem aqueles olhos de Sharmila a fita-lo de forma compassiva e clarividente. Matou-a, eram essas as suas ordens, mas logo deixou de cumprir ordens. Deixou a guerra, seus amigos African-American e um Indian-American. Deixou também os colegas que são simplesmente americanos, deixou a guerra e o Iraque para voltar, ou não, para os Estados Unidos.

Lília Momplé escreve de forma fluída e emocionante, conseguimos estar lá com eles e com elas; lá onde não há culpa nem vencedores nem vencidos, só um desespero silencioso acompanhado por raios de esperança.

Publicado originalmente em 2014

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