Direito à Luta e Direito ao Descanso

É inegável o contributo das mulheres negras e africanas na edificação das sociedades em que se encontram e na construção de um movimento global pela igualdade. Quer através do seu pensamento, da sua força de trabalho, como das suas diversas experiências históricas.

São as mulheres negras que erguem as bandeiras anti-racistas dentro da luta feminista hegemónica — que nem sempre se abre para recebê-las — e foram as que alçaram as bandeiras de classe para recordar que as demandas das mulheres feministas brancas não eram as suas demandas e que estas não as conseguiam representar na plenitude. Porque, enquanto as mulheres brancas ocidentais lutavam pelo direito ao trabalho, à esfera pública e direito de voto, as mulheres negras queriam o direito ao descanso, à família e aos afetos — dilaceradas pelo desenraizamento e pela Escravatura, no âmbito do colonialismo. É de notar o longo caminho à emancipação e direito de voto, porque, diga-se, as mulheres negras nas sociedades ocidentais foram quem ajudou a suportar a emancipação das mulheres brancas, tomando conta dos filhos e filhas destas e das suas casas e permitindo-lhes libertar-se e ocupar o espaço público. Sim, o género tem cor, por isso é premente nomear a cor, porque ela tem circunscrito vidas e experiências históricas concretas das mulheres negras.

Uma das áreas que simboliza uma mudança profunda é a reivindicação antiga das mulheres negras pelo direito ao descanso. Descanso quando, na sua maioria, auferem os salários mais baixos e se encontram em trabalhos que as exploram física e mentalmente. Descanso quando nada lhes é direcionado em termos de lazer e cultura e quando muitas vezes o descanso se encontra fora do seu alcance físico e geográfico.

Neste quadro, a importância do feminismo interseccional dentro das lutas feministas do ocidente e mais a sul a importância do feminismo afrocentrado, womanism e motherism em África,  todas elas alternativas afrocentradas ao feminismo tradicional, são parte do contributo das mulheres negras para o movimento global pela igualdade e pela justiça social e histórica.

Hoje em dia, para aferirmos o nível de progressismo e abertura de uma sociedade, podemos simplesmente procurar pelas mulheres negras da mesma. Saber onde se encontram, que posições ocupam e qual o seu nível de engajamento social e político. Saberemos logo, se esta sociedade já se conseguiu livrar das amarras do racismo e da xenofobia ou se estas últimas continuam a ditar a vida, as expectativas e as oportunidades das mulheres negras e africanas. 

Se cada dia mais, sobretudo com a nova geração de mulheres negras e afrodescendentes, vemos uma abertura social à presença e visibilidade de mulheres racializadas, notamos contudo, que estas não se dão sem luta social e política. A visibilidade crescente de mulheres negras nas diversas áreas é resultado das suas lutas históricas e recentes e a uma maior consciência das potencialidades da sua participação — mesmo que ainda controlada — nas diversas esferas da sociedade.

Outrora presas nas amarras da meritocracia, que remete as mulheres negras para planos de eterna subalternidade e invisibilização — mesmo com as normais excepções — a crescente formação e especialização das mulheres negras e a quebra progressiva de estereótipos, permite-nos uma sociedade que por mais que queira, terá dificuldade em fechar-se completamente. Porque as mulheres negras mudaram de posição e a sociedade já não as consegue voltar a colocar para onde as remetia. 

Uma das áreas que simboliza uma mudança profunda é a reivindicação antiga das mulheres negras pelo direito ao descanso. Descanso quando na sua maioria, auferem os salários mais baixos e se encontram em trabalhos que as exploram física e mentalmente. Descanso quando nada lhes é direcionado em termos de lazer e cultura e quando muitas vezes o descanso se encontra fora do seu alcance físico e geográfico. O direito ao descanso e a uma vida saudável e justa são partes daquilo pelo que as mulheres negras e africanas continuam a lutar.

A cada 8 de Março perguntamo-nos sobre aquilo que já conseguimos coletivamente e o caminho que ainda falta percorrer. E falta-nos um longo caminho, é certo, sobretudo quando as conquistas feministas e das mulheres em todo o mundo não estão asseguradas com as ameaças constantes às democracias. Entendemos, porém, que as demandas das mulheres negras, imigrantes e empobrecidas são demandas que ajudam à consolidação das democracias e ao melhoramento das sociedades e suas instituições.

A cada 8 de Março pergunto-me se as vozes das mulheres negras já estão a ser ouvidas e se essa escuta consegue ou não abrir portas à justiça histórica para todas as mulheres, em forma de avanços sociais e legislativos.

 

Joacine Katar Moreira é historiadora e política, feminista interseccional e anti-racista, nascida na Guiné-Bissau em 1982. É licenciada em História Moderna e Contemporânea, mestre em Estudos do Desenvolvimento e doutorada em Estudos Africanos pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. As suas áreas de estudo e de intervenção são os Estudos do Desenvolvimento, Estudos de Género, violência, política e movimentos sociais. Possui vários artigos e obras publicadas, de que se destaca “Matchundandi: Género, Performance Violência Política na Guiné-Bissau” (Lisboa: Sistema Solar, 2020). Mentora e fundadora do INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal, criado em 2018 para lutar contra a invisibilização e o silenciamento da mulher negra na sociedade portuguesa, tem participado ativamente no debate público sobre o Colonialismo e a Escravatura em Portugal.

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