Eu acho importante ler este livro porque…
por Joacine Katar
É um livro que procura retratar as relações raciais, culturais e afectivas que se estabelecem entre uma família inglesa londrina (Vanessa Henman, seu filho Justin e o pai deste Trevor) e a empregada ugandesa Mary Tendo, assim como o questionamento dos lugares-comuns e os pré-conceitos existentes.
Li-o há alguns anos atrás e no final fiquei com uma vontade imensa de continuá-lo, agora por palavras minhas e com outras coordenadas, porque o livro trata de uma categoria profissional sobre a qual sempre quis escrever, que são as empregadas domésticas negras na Europa, geralmente imigrantes africanas e de condição social e económica muito desfavorecida. Enfim, mulheres de rostos e corpos invisíveis, cujos nomes são as únicas coisas que se materializam nas casas onde trabalham, nomes estes que têm donas e patroas, que regra geral ignoram as suas vidas e as suas experiências.
Porém, quando as empregadas-trabalho dão lugar às empregadas-pessoa, elas conseguem a relativização dos valores e os padrões culturais das famílias e das sociedades onde estão inseridas, inspirando até a criação cultural europeia, de que este livro de Maggie Gee é exemplo, e aqui mais próximo de nós, o mais recente filme “Bobô” da realizadora portuguesa Inês Oliveira, que foi baseada na relação que começa quando a patroa consegue olhar com olhos de pessoa para a empregada-pessoa que ali se encontrava. Penso neste livro e recordo-me também do pouco que sei do Movimento Negro no Brasil, onde as empregadas domésticas negras são uma das faces da necessidade de mudança cultural e política induzida pela luta contra o racismo, a violência e a segregação racial, sendo símbolos da desigualdade social, da exploração económica e do racismo institucional que se quer transformado!
Nós, as crianças, sempre soubemos que tínhamos de deixar a aldeia. Para voltar. Mais, melhores, diferentes. Eram os nossos pais que nos diziam para ir. Viam-nos como professores, advogados, dentistas, médicos, até presidentes. Não viam que poderíamos ser porteiros e empregados de limpeza, motoristas de táxi ou arrumadores de carros? – apesar das nossas habilitações e diplomas. (Mary Tendo)
Maggie Gee, numa escrita fluída e espontânea, foca as personagens Vanessa e Mary e consegue apresentar-nos os dois lados da moeda, os preconceitos e as críticas mentais que cada uma das personagens faz permanentemente à outra, provando, ao mesmo tempo, que são mais as constantes do que as mudanças no que diz respeito ao hipotético choque cultural existente entre elas.
O facto é que V. Henman personifica o indivíduo branco europeu preconceituoso e arrogante, que sofre de um complexo de superioridade frágil e que subestima permanentemente os imigrantes africanos, menosprezando a sua cultura, ainda que partilhando quotidianamente o mesmo espaço físico. Ao mesmo tempo, a autora apresenta-nos o retrato de um imigrante africano na figura de M. Tendo, que encontra na Europa um escape às sérias dificuldades do seu país de origem, sem que isso represente necessariamente a melhoria das suas condições de vida, e foca também a falsa submissão destes face aos seus patrões brancos, por quem muitas vezes nutrem um profundo desprezo, conscientes da exploração económica de que são alvo, mas que aceitam por falta de melhores opções. Simultaneamente, estas relações dão lugar a espaço para negociações formais e subtis, avanços e recuos, numa luta simbólica e também efetiva pelo controlo. Aqui entram os afectos, as dependências de ambas as partes e a desconfiança permanente que ameaça minar a boa convivência.
Vanessa Henman é uma escritora neurótica, desligada das suas origens e que se refugia na escrita para fazer face à sua solidão, à depressão do seu filho com quem não tem uma relação afectiva salutar, ao seu ex-marido de quem tem ciúmes e a quem continua ligada emocionalmente, e que se sente posta em causa por Mary Tendo, a sua empregada negra de curvas generosas, “uma africana pujante e corajosa, imbuída de valores ancestrais sobre a família, a boa alimentação, a vida saudável”. Tendo vem desequilibrar os dados pré-determinados da vida dos Henman, apontando alternativas de vida e ocupando um lugar central na estabilidade emocional da família. Contudo, ela tem os seus planos pessoais e o seu trabalho em casa dos Henman está ligado a um projecto financeiro que a faz negociar e explorar a dependência dos Henman a seu benefício. Porém, a vida familiar de Tendo também se encontra longe do desejado, tendo sido afastada do seu único filho pelo pai deste.
Um aspecto importante presente neste livro, e que é sintomático em muitas famílias de imigrantes negros, são os problemas familiares de Mary Tendo, especialmente os do seu filho Jamie Jamil. Ocupada a cuidar de Justin, Mary não pôde dar a mesma atenção a Jamie, hoje um jovem problemático. Em resposta ao amor e à atenção que sempre recebeu de Mary, Justin corresponde e tem em Mary a figura maternal que lhe falta e que o consegue tirar da depressão, mas terá ela a mesma força e capacidade de salvar o seu próprio filho?
Este facto remete-me para um passado mais distante que é o das escravas negras, que pode ser representado pelo quadro intitulado “Mãe Preta”, sobre o Brasil de 1912, do pintor Lucílio de Albuquerque, exposto no Museu de Belas Artes da Bahia, Salvador.
Aqui, a ama-de-leite negra amamenta o bebé louro da sinhá, enquanto olha enternecidamente para o seu próprio filho, deitado no chão como que esperando a sua vez, desapropriado do seu lugar natural, que é ocupado e explorado pelo bebé branco. Este é sem dúvida um panorama de hierarquia, de subjugação e da diferença racial e social, mas também é um espaço de partilha, um espaço de intimidade e um espaço de amor. Provavelmente esta escrava amou as duas crianças e a exploração da sua hiperfeminiilidade constrata com a secura formal da mãe branca, que ama mas não nutre nem cuida dos seus filhos, como tão bem retratou Maggie Gee neste livro.
Joacine Katar Moreira
Publicado originalmente em 2014